Estar Vivo ou Se Sentir Vivo?
Poucos dias atrás, publiquei uma nota sobre um acidente que aconteceu perto da minha cidade. E, no meio daquela tragédia, uma pessoa daqui, de onde eu moro, perdeu a vida.
A notícia em si já é um choque, um acidente horrível envolvendo uma viagem de balão. Mas o que me pegou de verdade foi algo ainda mais humano, quase poético – antes de partirem, um casal que estava nessa viagem postou uma frase:
"O mundo está nas mãos daqueles que têm a coragem de sonhar e de correr o risco de viver seus sonhos"
Fiquei ali, lendo isso e depois passando os olhos pelos comentários, e me veio uma pergunta que não desgruda da minha cabeça:
Será que viver “intensamente” é mesmo o jeito mais honesto de ser feliz?
Eu também tenho esse impulso de querer sentir tudo. Gosto de esportes, gosto de coisas radicais. Tenho vontades que ainda guardo comigo: pular de paraquedas, enfrentar meus medos, viver experiências extremas, como se só assim a vida ganhasse cor.
Mas no fundo, eu me pergunto: o que vale esse risco?
Será que minha vida inteira vale menos do que a ânsia de ter uma história pra contar? Pular de paraquedas, por exemplo... Por mais que soe incrível, será que vale a possibilidade real de não voltar?
E fico pensando naquele casal... Será que eles partiram em paz, com a sensação de que morreram fazendo algo que amavam? Ou será que, se pudessem, trocariam tudo pra ter mais um café da manhã comum, mais uma briga boba, mais cinquenta anos de rotina?
Ou ainda – será que, se não tivessem ido, passariam o resto da vida se culpando por não ter tentado? E se justamente essa culpa fosse o que manteria eles vivos por décadas?
Quando comecei a aprender a dirigir, tudo parecia radical. Só de girar a chave, meu coração acelerava. Eu me sentia desperto, inteiro, presente. Era tão intenso que parecia que nada mais importava. Hoje, dirijo quase no automático. Mesmo atento, minha cabeça se enche de pensamentos. Aquilo que um dia foi novidade virou só mais uma parte da vida – a não ser quando me empolgo e aperto o acelerador.
O problema de querer sempre sentir tudo com força é que a régua vai subindo. A gente se acostuma. Aquilo que antes parecia enorme, depois de um tempo vira pouco. Você sobe na montanha-russa a primeira vez e jura que nunca vai esquecer aquela sensação. Na décima volta, já não sente mais nada. Então você precisa procurar algo maior, mais rápido, mais perigoso.
Eu vejo isso até no meu vício por filmes de terror. Quando era criança, eu tapava os olhos. Morria de medo. Meu coração disparava – e eu amava aquela sensação de estar vivo. Hoje, depois de tantos filmes, quase nada me assusta. Assisto rindo, como se tivesse esvaziado tudo que um dia me deu frio na barriga.
Isso tem lados bons, claro. Mas também tem um preço alto. Porque, quando o medo vai embora, a gente começa a se colocar em riscos maiores e nem percebe. E às vezes, esse risco é exatamente o que pode acabar com a nossa vida.
Pensando nisso tudo, lembro do Dean Potter, aquele escalador que vivia fazendo saltos de wingsuit no Yosemite. (Parque Nacional de Yosemite, na Califórnia) Ele era experiente, já tinha conquistado quase tudo no esporte. Mas, mesmo assim, dizia que precisava sentir o risco, porque era ali que ele tinha certeza de que estava vivo. No fim, foi exatamente essa necessidade de adrenalina que tirou a vida dele. É curioso como a gente vai normalizando o que antes parecia extremo, e quando aquilo deixa de provocar medo ou excitação, começa a buscar algo ainda mais perigoso — até que uma hora não tem mais como voltar.
Por que a gente quer tanto isso?
Por que essa necessidade de se empurrar pro limite, de procurar o medo como se ele fosse uma forma de salvação?
Não é só química no corpo. Não é só a descarga de adrenalina queimando no peito. Tem algo mais fundo nisso, algo que mora lá dentro e sussurra todo dia, até a gente não conseguir mais ignorar.
É o desejo de sentir que estamos mesmo aqui. De provar que a vida tem algum peso, que não é só uma repetição cinza de dias iguais. No meio da rotina monótona, do conforto que vira prisão, do tédio que mastiga a gente por dentro, nasce essa vontade urgente de criar uma faísca, de qualquer coisa que nos lembre que ainda somos feitos de medo e de vida.
Por isso tanta gente se joga no risco. Não é só aventura — é uma forma de se afirmar, de gritar pra si mesmo: “Eu existo. Eu sou real.”
O problema é que essa busca vira um ciclo difícil de sair. No começo, a sensação é tão forte que parece que tudo faz sentido. O coração dispara, o corpo inteiro acorda, e você se sente inteiro.
Mas com o tempo, o que era extraordinário fica comum. A emoção que antes te virava do avesso já não tem a mesma força. O frio na barriga some, e no lugar fica um vazio — uma inquietação que só cresce.
Então a régua sobe. O que ontem parecia radical hoje já não basta. Você começa a procurar algo maior, mais intenso, mais perigoso. Porque só assim consegue sentir alguma coisa de novo.
E sem perceber, o risco deixa de ser escolha e vira quase uma necessidade. A adrenalina se torna uma droga. Você quer, você precisa, mesmo sabendo o preço.
Eu entendo isso. Eu também gosto dela. Gosto da forma como tudo para, como o presente fica mais vivo.
Mas é aí que mora o perigo: quando a gente começa a gostar demais da ideia de fazer algo que não devia só pra sentir o arrepio. Quando percebe que, no fundo, não é mais pela diversão — é pelo risco.
E mesmo assim, a pergunta continua ali, silenciosa: até onde a gente vai por essa sensação?
“O homem vive numa eterna insatisfação; a ânsia por novas emoções nada mais é do que o vazio disfarçado, e essa busca incessante pode levá-lo à ruína.”
Arthur Schopenhauer
Será que dá pra ser inteiro sem buscar o extremo?
A busca pelo extremo muitas vezes é só uma tentativa de lembrar que estamos vivos, quando talvez bastasse lembrar que já estamos.
Talvez a resposta não seja nunca mais se arriscar. Nem viver trancado num lugar seguro, esperando que nada aconteça.
Acho que tudo é uma questão de medida — não no sentido de colocar rédea em tudo, mas de ter a coragem de olhar de frente pra esse vazio que mora na gente. Porque, no fim, é dele que nasce essa necessidade de se provar, de sentir algo maior que a vida comum.
E não tem nada de errado em querer experiências que façam o coração disparar. O problema é quando a gente usa isso pra tampar buracos que nem sabe que existem. Quando o risco vira anestesia, e não escolha.
Eu comecei a perceber que talvez o ponto não seja matar essa fome de uma vez por todas, mas aprender a conviver com ela. Entender que nem todo silêncio precisa ser preenchido com um grito, que nem todo dia cinza precisa virar uma explosão de adrenalina.
Às vezes, o jeito mais honesto de se sentir vivo é aceitar que a vida também acontece nos intervalos. Nos momentos em que nada é extraordinário, mas ainda assim é real.
E que a coragem de viver não está só em pular do alto, mas em ficar. Ficar quando é chato, quando é incômodo, quando tudo parece pequeno demais. Ficar e sentir tudo, até aquilo que dá medo de tão banal.
No fim, talvez seja isso que nos faz inteiros: conseguir dosar. Saber quando vale se jogar e quando é só o vazio pedindo palco. E ter paciência pra entender que nem sempre a gente vai se sentir grande, invencível, especial — mas mesmo assim, a gente tá aqui.
E isso, por si só, já é intenso o bastante.
Amo leituras que lembram sobre o extraordinário no ordinário. Que enxergam o tédio como um intervalo de calma. Gosto de dizer que viver o simples é se lembrar de que os pequenos momentos ainda são grandes histórias!