Esses dias, fui viajar pro interior pra visitar minha família. Peguei aquele ônibus de sempre, com o mesmo cheiro de estrada e de tempo passando. Sentei na janela, coloquei o fone e deixei a paisagem fazer o que sempre faz: me puxar pra dentro de mim.
A playlist estava no aleatório. Sempre deixo assim quando não quero escolher, quando prefiro deixar que a música me encontre em vez de eu ir atrás dela. Mas uma hora sempre chega aquela música, aquela que acerta em cheio onde dói.
E bastaram os primeiros acordes pra me lembrar dela, de um dia que parecia comum, mas que se esconde em mim até hoje.
Era uma tarde chuvosa. Eu e ela sentados num banco, em frente a uma cafeteria qualquer. A conversa tava boa, fluía daquele jeito raro, em que o tempo parece menor do que é. Ela ria de coisas que eu nem achava tão engraçadas. Eu prestava atenção em detalhes bestas, tipo o jeito que ela mexia na manga da blusa.
E aí teve aquele momento, aquela pausa que ninguém fala, mas que todo mundo sente. O olhar dela parou no meu, por um segundo a mais do que o normal. Era uma chance nítida, quase gritante.
Mas eu hesitei, desviei o olhar, falei alguma besteira e o momento passou.
A chuva continuou, a conversa também, mas algo ali se perdeu pra sempre. Eu segui a vida e ela também. Nada de dramático, só aquele tipo de coisa que acontece quando a gente se sabota antes mesmo de tentar e finge que não ligou, mas liga.
Na hora, parece só um detalhe, mas depois... a memória trata de transformar em peso. Ali, anos depois, no ônibus, percebi que não era exatamente arrependimento, era luto por uma possibilidade.
Quando o que não aconteceu pesa mais que o que aconteceu
E aí me veio a pergunta: Por que a gente se pune por momentos que nem chegaram a acontecer?
Eu fico voltando nessa cena como quem rebobina um filme e espera outro final. Mas a verdade é que não tem outro final. Só aquele, só aquele banco, aquele silêncio, aquela chance que eu deixei passar porque tive medo de ser rejeitado, medo de parecer bobo, medo de sentir. E o mais estranho: se fosse outra pessoa me contando essa história, eu entenderia.
Diria: "Tá tudo bem. Você fez o que conseguiu. Às vezes a gente trava. Faz parte." Mas quando sou eu...Não tem trégua.
E não foi só naquela tarde. Quantas vezes eu já não fiquei preso em possibilidades passadas?
Naquela palavra dita na hora errada, que machucou alguém que eu amava. Na mensagem que eu nunca mandei e que poderia ter mudado tudo. No abraço que eu neguei, no pedido de desculpas que eu deixei pra depois e o depois nunca veio. No olhar que desviou quando devia ter encarado. Na vez que alguém precisou de mim e eu me fiz ausente porque não soube o que dizer.
Essas pequenas coisas...Elas voltam, quando menos espero. Em silêncio, no meio de uma música, de um cheiro, de um lugar qualquer, e doem como se tivessem acontecido ontem. Como se ainda houvesse algo a fazer, como se eu pudesse mudar o final, se eu me torturasse o suficiente.
Mas o que sobra mesmo é só o peso, o peso do que foi e do que poderia ter sido, o peso de me negar o perdão que eu ofereceria a qualquer outra pessoa.
Por que a gente faz isso com a gente? Por que é tão fácil ser generoso com o erro dos outros, mas tão cruel com o próprio? Por que guardamos com tanto cuidado o que nos dói?
Talvez porque, no fundo, a gente ache que se punir é uma forma de consertar. Mas não é, se punir não muda nada. Só mantém o passado vivo no pior lugar possível: dentro da gente.
E aí, no ônibus, olhando o mundo passar pela janela, pensei: Até quando eu vou carregar esse fardo? Até quando vou deixar que a culpa grite mais alto que o que eu aprendi?
🕰️ Nietzsche – A memória como prisão e também como força
Nietzsche, no livro A Genealogia da Moral, fala que o ser humano é o único animal que carrega dentro de si a capacidade de lembrar o que já passou e julgar a si mesmo por isso. Para ele, isso nos torna profundos — mas também nos torna doentes.
“O homem é o animal que aprendeu a fazer promessas.”
E o problema é justamente esse:
A memória, que poderia ser nossa aliada, tantas vezes se torna nossa cela.
A gente lembra do que doeu, do que falhou, do que não dissemos, e transforma isso num tribunal interno. Um tribunal onde somos o juiz, o réu e o carrasco ao mesmo tempo.
E o pior: esse julgamento nunca acaba.
A sentença é sempre a mesma: “—Você errou. Você devia ter feito diferente. Você devia ter sido melhor.”
E lá vamos nós, carregando essa dívida emocional como se um dia o passado fosse se desfazer com o tanto que nos culpamos.
Só que não desfaz, e nada muda o que já foi. E quanto mais a gente se prende nisso, mais o passado se estende pro presente, mancha o agora e torna o futuro mais pesado.
A memória nos obriga a revisitar o que doeu, como se houvesse alguma redenção nisso.
Somos marcados por aquilo que deveríamos ter feito, e isso cria ressentimento, arrependimento, vergonha.
Como se os erros fossem cicatrizes abertas pra sempre, como se aquilo que deixamos de viver fosse maior do que aquilo que realmente vivemos.
Mas Nietzsche também sugere que há um caminho pra sair dessa prisão.
Ele nos convida a transcender, a aceitar que o passado — com tudo o que ele trouxe, de bom e de ruim — foi o que nos moldou.
E que podemos, ao invés de nos afundar no “e se”, aprender a dizer “foi como foi, e foi necessário”.
E a verdade é que eu nunca precisei pedir desculpas só pras pessoas que machuquei. Eu precisava — e ainda preciso — aprender a pedir desculpas pra mim.
Pedir desculpas por não ter sabido lidar melhor.
Por ter sido duro comigo mesmo.
Por ter exigido perfeição quando o que eu mais precisava era compaixão.
A gente fala tanto de perdoar os outros. Mas e quanto a se perdoar? Não é esquecer, não é fingir que nada aconteceu. É olhar de frente pro que doeu, aprender com aquilo, e dizer:
"Eu errei, sim. Mas eu não sou só o que errei. E eu mereço seguir em frente."
Perdoar a si mesmo não é só importante — é vital.
Porque enquanto a gente não se perdoa, a vida fica presa num ciclo que nunca se fecha. A gente tenta seguir, mas o passado puxa de volta.
Tenta ser feliz, mas a culpa sussurra no ouvido.
Tenta amar, mas o ressentimento por si mesmo levanta barreiras invisíveis.
Quando você não se perdoa, você se sabota sem perceber.
Começa a achar que não merece as coisas boas que chegam.
Recusa oportunidades porque, lá no fundo, acredita que falhou demais pra ter direito de tentar de novo.
E vai, sem ver, construindo ao redor de si uma prisão feita de tudo o que gostaria de ter sido e não foi.
“Quando você se perdoa, o passado perde o poder de ferir o seu presente.”
— Jack Kornfield, em The Art of Forgiveness
Ninguém merece passar a vida inteira se punindo por não ter sido perfeito.
A gente já carrega peso suficiente só por existir, só por sentir.
O perdão a si mesmo é o que alivia esse fardo.
É o que faz a gente levantar a cabeça e lembrar que o passado não define quem você é — só mostra de onde você veio.
Se perdoar é abrir espaço pra recomeçar.
É o que nos permite, finalmente, viver o presente sem as correntes daquilo que não podemos mais mudar.
É sair do lugar de juiz e começar a ser testemunha do próprio processo de crescimento. É entender que ninguém vive sem tropeçar — e que crescer dói mesmo. E se a culpa te paralisa, o perdão te devolve o passo.
Então hoje, quando uma lembrança amarga tenta me dominar, eu ainda sinto.Mas agora eu tento respirar fundo...e dizer baixinho pra mim mesmo:
"Tá tudo bem. Eu já entendi. E agora eu me deixo ir."
Seguindo você, força aí🙏
Me lembrou desse post que escrevi aliás https://open.substack.com/pub/laurazanvettor/p/um-erro-nao-me-define-eu-acho?r=39vhud&utm_medium=ios